Atos dos Apóstolos
Os Atos dos Apóstolos constituem a segunda parte da obra de
Lucas (1,1-2). Desde muito cedo, foram considerados Escritura sagrada, sendo
lidos na liturgia da Igreja como memória e norma de fé. Esta obra “apostólica”,
relata a sorte do Evangelho confiado aos Apóstolos e expõe os primeiros passos
da comunidade cristã; por isso a Igreja viu nela um guia precioso e um estímulo
exemplar para a vida dos cristãos: da escuta da Palavra à fé, do Baptismo à
solidariedade, da perseguição ao martírio.
Pensa-se que o seu autor é o mesmo do Terceiro Evangelho,
que a tradição, durante séculos, tem identificado com Lucas. Apesar de alguns
problemas levantados pelos peritos, o estudo da língua e do pensamento dos dois
livros, assim como da figura de Paulo nos Atos e da concordância com o pensamento
das suas Cartas, levam a concluir a favor daquele a quem o Apóstolo trata por
«Lucas, o caríssimo médico» (Cl 4,14).
Tendo em conta o estado da crítica atual, o livro terá sido
escrito por volta do ano 80, ou seja, depois do Terceiro Evangelho, que muitos
estudiosos colocam depois do ano 70. Um dos elementos a favor dessa datação é a
abertura e indeterminação do epílogo, cujo resumo da estadia de Paulo em Roma
mostra como o anúncio do Evangelho já chegava de Jerusalém às extremidades da
terra (1,8; 28,30).
TEXTO
O estudo dos Atos confronta-se, antes de mais, com o
complexo problema do estabelecimento do texto primitivo. Basta dizer que
existem três versões principais: a síria ou antioquena, a egípcia ou
alexandrina e a ocidental ou corrente, de grande interesse histórico e
doutrinal. Sob o ponto de vista literário, a obra caracteriza-se por uma grande
unidade de língua e de pensamento, independentemente das diferenças entre as
duas partes em que se divide.
DIVISÃO E CONTEÚDO
O livro divide-se em duas grandes partes: 1-12 (“Atos de
Pedro”) e 13-28 (“Atos de Paulo»), com as seguintes secções:
Introdução: 1,1-11;
I. A Igreja de Jerusalém: 1,12-6,7;
II. Expansão da Igreja fora de Jerusalém: 6,8-12,25;
III. Missões de Paulo fora de Jerusalém: 13,1-21,26: 1.ª
Viagem (13,1-14,28); 2.ª Viagem (15,35-18,22); 3.ª Viagem (18,23-21,26).
IV. Paulo, prisioneiro de Cristo: Condenação e Viagem do
Cativeiro (21,27-28,31).
Distinguem-se facilmente diversas unidades literárias, cuja
extensão e repetição conferem ao livro atual a sua própria fisionomia
“eclesial”:
Narrações de missão: 2,1-41; 8,4-40; 9,32-11,18; 13,1-21,26.
Narrações de processos: 3,1-4,31; 5,17-42; 6,8-8,12; 12,1-7;
21,27-26,32.
Narrações de viagens: 13,1-21,26; 27,1-28,16.
Discursos de diversos tipos: 2,14-39; 3,12-26; 4,8-12;
5,29-32.35-39; 7,2-53; 10,34-43; 13,16-41; 14,15-17; 17,22-31; 20,18-35;
22,1-21; 24,10-21; 26,2-23; 28,25-28.
Orações: 1,24-25; 2,42.46; 4,24-30; 12,11...
Cartas: 15,23-29; 23,25-30.
Sumários: 2,42-47; 4,32-35; 5,12-15...
Além da coordenação de todos estes materiais, o autor pôde
dispor de fontes orais e escritas, muitas vezes ligadas à fundação e vida das
igrejas referidas ao longo do livro. Ressaltam de um modo particular as passagens
descritas com o sujeito “nós”, em que o autor se sente testemunha ocular,
deixando-nos uma espécie de “diário de viagem” ou um “itinerário” dos
acontecimentos ligados a Paulo (16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16).
VALOR HISTÓRICO
As narrações e os discursos dos Atos são confirmados pelos
dados da História e da Arqueologia, por um lado, e, por outro, concordam com o
quadro dos Evangelhos e com as Cartas de Paulo, que ajudam a compreender. Os
resultados do exame histórico são favoráveis à veracidade do livro e permitem
estabelecer os elementos de uma cronologia bastante segura das origens cristãs,
assim como das Cartas de Paulo.
A visão histórica do livro aparece integrada numa visão
teológica. Assim, Deus é ator e autor do crescimento da Igreja (2,47;
11,21.23). De um modo particular, o autor insiste no Dom do Espírito, atuando
sem cessar na expansão da Igreja.
Para o autor dos Atos, a História do mundo é uma História de
Salvação que tem Deus como autor principal e se divide em duas etapas
principais: a primeira é o tempo da Promessa, da prefiguração, da preparação,
da Profecia o Antigo Testamento; a segunda é o tempo do cumprimento, da
realização, da salvação já presente o Novo Testamento. Esse cumprimento do
desígnio salvífico de Deus em Cristo Senhor abre um tempo em que a História da
Salvação continua até à plenitude final. Daí a importância decisiva que Lucas
atribui ao “hoje”, como memória e imperativo da fé em Cristo ressuscitado.
UNIVERSALIDADE
Deste “hoje” faz parte, em primeiro lugar, o anúncio da
Boa-Nova e o testemunho de Jesus, Senhor e Messias, que encontra nos Doze, nos
diáconos e, sobretudo, em Pedro e Paulo, os arautos mais credenciados.
Os Atos descrevem o espaço geográfico e humano da expansão
dessa Boa-Nova de Jesus. Enquanto no Evangelho de Lucas a manifestação de Jesus
começa em Nazaré e termina em Jerusalém, nos Atos, o anúncio da Boa-Nova parte
de Jerusalém (2-5), passando depois à Samaria e Judeia (8,1), à Fenícia, Chipre
e Síria (11,19-21), para, através da Ásia Menor e da Grécia (13-18), chegar a
Roma (28,30).
O Evangelho destina-se a todos (17,31); mas a passagem da
salvação do Evangelho, do povo de Israel para os pagãos (13,46), faz parte do
plano de Deus (2,39; 15,7-11.14) e constitui o tema principal deste livro.
Aos olhos do autor, o ideal, para o qual todas as
comunidades devem tender, é expresso nos chamados “sumários”. Aí se traduzem os
vectores fundamentais que, em referência à comunidade primitiva de Jerusalém,
devem caracterizar as diversas igrejas: escuta assídua do ensinamento dos Apóstolos,
comunhão fraterna e solidariedade, participação na fracção do pão e nas orações
(2,42-47; 4,32-35; 5,12-15).
No interior das comunidades adivinham-se tensões, sobretudo
entre helenistas e judaizantes, mas também sobressaem grupos de pessoas com funções
particulares de governo, de direção e de serviço, e até com poderes
taumatúrgicos. Tudo isso representa uma certa estrutura, necessária para a
comunhão das igrejas. Depois dos Doze Apóstolos, com um lugar privilegiado para
Paulo, vêm os Sete Diáconos (6,1-6), os Anciãos (14,23; 20,17.28) e os Profetas
(11,27).
Esta exemplaridade dinâmica, animada pelo Espírito Santo,
ontem como hoje, há-de traduzir-se em decisões e atitudes que sejam testemunho
da ressurreição do Senhor, mediante a comunhão na diversidade, na solidariedade
e na piedade. Nesta “Via do Senhor” está a identidade própria do Povo de Deus,
com uma história a recordar e a recriar, primeiro a partir de Jerusalém, depois
a partir de Roma, «até aos confins do mundo» (1,8).
Um dos pontos fundamentais na trama literária dos Atos é a
passagem do judaísmo para o cristianismo. De facto, os primeiros cristãos, que
eram judeus, deviam dar “um salto” da convicção da salvação pela Lei (15,1.5)
para a salvação pela fé em Cristo (15,9.11). Daí as tensões que surgem na
abertura a circuncisos e incircuncisos, e na passagem do Evangelho para os
pagãos. Sem rejeitar os judeus, e sem se deixar “judaizar”, a Boa-Nova de
Cristo tem como fronteira a universalidade.
Este dado teológico ajuda a compreender a intenção do autor.
Ao compor a sua obra, Lucas pensava, sobretudo, num público cristão,
constituído por judeus e não-judeus. Homem da unidade e da comunhão, ele apela
a que os cristãos espalhados pelo mundo se conduzam pela exemplaridade da
comunidade de Jerusalém. Insistindo sobre a fé, ele opõe-se a eventuais
tendências judaizantes; respeitando a fidelidade dos judeo-cristãos à Lei, ele
desarma as críticas dos irmãos vindos da gentilidade.